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Cláusulas abertas na CLT e o princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato, na seara trabalhista

Analisando o Código Civil, vemos que até 2018 existia apenas um artigo que utilizava a palavra “princípio”, que era o de número 422, justamente o que trata da boa-fé.

Eis o texto: Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Depois de 2018 apareceu a palavra princípio em mais dois lugares do Código: (i) no inciso II, do § 1º do Art. 1.358-E (em 2018) e (ii) no parágrafo único do art. 421 (em 2019).

Já a palavra “boa-fé” aparece em 48 artigos do Código Civil.

Gostaríamos de afirmar, desde já, que a ideia da “boa-fé objetiva” tem a ver com uma conduta ética das partes em um negócio jurídico, e, por ter sido este princípio positivado, tornou-se uma regra normativa.

Os estudiosos do tema apontam haver  três artigos no Código Civil que abordam este princípio de um maneira integrativa do Direito (o citado artigo 422 acima), bem como uma noção corretiva, conforme artigo 187, e, por último, uma função interpretativa, prevista no artigo 113.

Abaixo, os artigos 187 e 113, ambos do Código Civil:

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.

§ 1º  A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º  As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Ainda sobre a boa-fé objetiva, aponta-se que ela tem funções dentro dos negócios jurídicos como: (i) deveres de lealdade, cooperação, informação e segurança. Imaginando-se, ainda, que tais aspectos derivam da “boa-fé”, e não dos desejos das partes. (ii) em juízo, a boa-fé é arguida pelos brocardos jurídicos “dolo agit qui petit quod statim redditurus est” (a parte que agir com má-fé será punida); “tu quoque” (menores suprimindo, voluntariamente, sua incapacidade, e devendo indenizar a outra parte que agiu na confiança); “exceptio non adimpleti contractus” (exceção do contrato não cumprido); “venire contra factum proprium non potest” (vedação do comportamento contraditório). (iii) por fim, a hermenêutica, utilizando do sistema aberto previsto no Código – cláusulas gerais – concedendo aos julgadores um maior poder de decidir os casos concretos, fazendo justiça às partes.

Quando se estuda o negócio jurídico, descobrimos novos princípios sociais, como a já citada boa-fé objetiva, mas temos também o da confiança, da transparência e da função social do contrato.

Sobre este último, função social do contrato, a previsão está no artigo 421 do Código, verbis: “A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)

Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Em que pese o parágrafo único dispor que a intervenção estatal será mínima, sobre a autonomia privada das partes, ou seja, sobre o negócio jurídico entabulado, o artigo 2035, em seu parágrafo único, também do Código Civil, estipula:

Art. 2.035........Parágrafo único. Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”.

Logo, os negócios jurídicos são limitados pela boa-fé objetiva e também pela função social dos contratos, por expressa previsão legal. Mas, claro, estamos dizendo que tudo isso ocorrerá se estivermos falando de contratos civis que não sejam paritários, já que é necessário o Estado proteger a parte mais fraca, hipossuficiente, vulnerável, portanto.

O uso da boa-fé objetiva e da função social do contrato é para que o judiciário, quando instado, busque reequilibrar o contrato, tornando-o mais justo e útil. Havendo uma equidade nas prestações, os contratos serão conservados, o que é de interesse das partes, do Estado e da sociedade.

Neste sentido, o Enunciado 26 do Conselho da Justiça Federal/STJ, que dispõe: A cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”.

Ainda, outro Enunciado, agora o de número 24 do CJF/STJ: “A violação destes deveres anexos pode dar ensejo à revisão do pacto caso haja desequilíbrio contratual, desproporcionalidade das prestações, ou quebra do sinalagma”.

Como podemos checar, o Código Civil está muito bem aparelhado, com cláusulas gerais, abertas, como função social do contrato, boa-fé objetiva, que possibilita reequilibrar um contrato que não esteja sendo paritário.

Por este motivo (partes iguais, mesmo valor, ninguém mais forte do que o outro) é que no ano passado surgiu mais um artigo no Código Civil, presumindo a paridade. Vejamos:

Art. 421-A.  Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

Agora, e como está a CLT – Consolidação das Leis do Trabalho? Sua existência vem desde 1943, e foi reformada recentemente em 2017. Mas continua engessada quanto ao contrato de emprego, com raras cláusulas abertas, sem previsão expressa de função social do contratual, quiçá boa-fé objetiva, em seu texto legal.

O que se pode descobrir, atualmente, de algumas cláusulas abertas constantes na CLT, estão nos artigos: 2º (assumindo os riscos da atividade econômica”); 444 (“livre estipulação das partes”); 510-B (“ A comissão de representantes dos empregados terá as seguintes atribuições: II - aprimorar o relacionamento entre a empresa e seus empregados com base nos princípios da boa-fé e do respeito mútuo”); 403 (“Parágrafo único. O trabalho do menor não poderá ser realizado em locais prejudiciais à sua formação, ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social e em horários e locais que não permitam a freqüência à escola”); 482 e 483 (justa causa); e 896-A (“O Tribunal Superior do Trabalho, no recurso de revista, examinará previamente se a causa oferece transcendência com relação aos reflexos gerais de natureza econômica, política, social ou jurídica”).

Basicamente, o único artigo da CLT que tem cláusula aberta, tratando do contrato de emprego, é o 444. Vejamos ele por inteiro:

“As relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes.

Parágrafo único.  A livre estipulação a que se refere o caput deste artigo aplica-se às hipóteses previstas no art. 611-A desta Consolidação, com a mesma eficácia legal e preponderância sobre os instrumentos coletivos, no caso de empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social”.                     (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)

A redação primitiva (só o caput), limitava a autonomia das partes às regras sindicais; decisões do Estado; e normas de segurança, higiene e saúdo ao trabalhador.

A reforma trabalhista de 2017 fez inserir o parágrafo único acima descrito, tratando do trabalhador empregado hipersuficiente, que pode negociar com maior amplitude com seu empregador, podendo “passar por cima” de eventuais regras legais previstas na CLT.

Mas tem cláusulas abertas, por fim, sabe onde? No término do contrato de trabalho. Nos artigos 482 e 483, ambos da CLT, constam termos como mau procedimento; bons costumes; mal considerável. Acreditamos que a expressão “bons costumes” seja sinônima de função social do contrato.

Diante de todo o exposto, espera-se um maior ativismo por parte dos julgadores trabalhistas, que analisem não só termos contratuais, normas sindicais, legislação trabalhista, na análise da confecção do contrato, da sua execução e de seu término, sob a ótica da boa-fé objetiva, transparência, confiança e função social do contrato. Em especial nesta pandemia, onde empresas estão reduzindo direitos trabalhistas, cortando salários, pagando salários e outros diretos com atraso contumaz, sob o argumento da crise econômica.

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