Pular para o conteúdo principal

Aplicação da "Solutio Retentio" no Direito do Trabalho

 Se um trabalhador entrar com ação trabalhista, requerendo reconhecimento do vínculo de emprego no desempenho de atividade ligada à prática do “jogo do bicho”, ele não irá ganhar a reclamação, por conta da Orientação Jurisprudencial n. 199 da Seção de Dissídios Individuais número 1, do Tribunal Superior do Trabalho.

Eis a redação da OJ 199 da SDI-1, do TST: “É nulo o contrato de trabalho celebrado para o desempenho de atividade inerente à prática do jogo do bicho, ante a ilicitude de seu objeto, o que subtrai o requisito de validade para a formação do ato jurídico”.

No entanto, o que queremos saber aqui é: - E se o empregador, dono do ponto, da casa que explora o jogo do bicho, efetivamente registrar o empregado, com vínculo de emprego, conforme CLT?

Poderia o empregador cancelar o registro, posteriormente, alegando a Orientação do TST acima?

Se você tomar apenas as expressões – “é nulo”; “ilicitude do objeto”; “requisito de validade do ato jurídico” – aparentemente dirá que sim.

Mas gostaríamos de dizer que não. Explicamos.

O artigo 814 do Código Civil, quando trata do Direito das Obrigações, aponta que “as dívidas de jogo ou de aposta não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou, salvo se foi ganha por dolo, ou se o perdente é menor ou interdito”.

Ou seja, não estamos tratando de uma obrigação civil, mas sim de uma obrigação natural, onde – mesmo no caso do jogo do bicho – não há obrigação ao pagamento (civil), mas se for pago, “não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou” (natural).

Quando falamos em obrigação natural, estamos a apontar que o devedor desta obrigação de fazer, dar ou não fazer, não pode ser compelido a realizar, mas, se ele dar, fazer ou não fazer, voluntariamente, daí nada se poderá fazer ao contrário.

O artigo 814 acima referido traz um argumento para refutar a ideia de que, se foi registrado, não pode mais cancelar o vínculo de emprego, no futuro.

E mais... Estamos diante de um trabalho que, apesar de ilícito, teve uma prestação de serviços, que efetivamente ocorreu, e não pode ser registrado o vínculo por força do entendimento do TST. Quem recebeu a prestação de serviços enriqueceu ilicitamente com a mão-de-obra do apontador do jogo, pois não teve que pagar férias, 13º salário, Previdência Social, FGTS, entre outros direitos trabalhistas. E o trabalhador, que tinha direito a tudo isso (cujos direitos têm natureza alimentícia) ficou sem, por força de uma jurisprudência.

Mas, se ele registrou o trabalhador, na forma da CLT, podemos justificar também o não cancelamento da anotação na Carteira de Trabalho com base no artigo 882 do Código Civil. Vejamos o que prescreve este artigo: “Não se pode repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou cumprir obrigação judicialmente inexigível”.

A obrigação do dono do jogo do bicho não era exigível, isto é, de fazer constar na Carteira do Trabalho o registro do contrato de emprego. Mas, se o fizer, não pode cancelar depois.

Os Civilistas chamam isso de uma anomalia, pois o trabalhador tem um crédito alimentar, trabalhista e previdenciário a receber, em razão do trabalho realizado, mas o “empresário” não tem responsabilidade de registrá-lo, e pagar os consectários legais trabalhistas, por conta de entendimento do TST.

Mas, e se o empregador, que registrou o contrato do “jogo do bicho”, entrar com ação para cancelar o vínculo? Novamente, ele não conseguirá, por conta dos argumentos acima, e também por conta da “solutio retentio”.

Esta expressão tem a ver com a seguinte situação: se alguém pagar uma dívida, que está prescrita, e ficar sabendo depois que não precisava ter pago, não poderá – no futuro – requerer o que pagou, de volta, isto porque aquele que recebeu o dinheiro, terá direito à “solutio retentio”, ou à “retenção do pagamento”, como demonstrado pelo artigo 882 do Código Civil.

Por todo o exposto, e ponderando, dentro dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, de que houve enriquecimento ilícito do empregador, e prejuízos salariais, previdenciários e alimentícios do trabalhador, na hipótese levantada neste artigo, o empregado registrado pelo dono do jogo do bicho terá direito à “solutio retentio” do vínculo de emprego, que foi anotado na sua CTPS, caso o empresário queira – judicialmente – requerer o cancelamento de seu ato, que é classificado como “ato jurídico em sentido estrito”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Diferenças entre as Pertenças e as Benfeitorias, frente ao Código Civil.

Matéria aparentemente pacificada no Direito Civil – PERTENÇAS – mas pouco consolidada em detalhes. Apuramos diversos autores, e vamos apresentar as características da pertinencialidade, para podermos diferenciar de um instituto muito próximo, chamado BENFEITORIAS. O Código Civil de 2020 define-a pelo Art. 93, verbis : “São pertenças os bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro”. Se pegarmos os códigos comparados que foram feitos após o NCC, os autores apontam que não há um paralelo com o CC/1916, mas Maria Helena Diniz informa que há sim, dizendo estar no art. 43, inciso III, que declara: “São bens imóveis: (...). Tudo quanto no imóvel o proprietário mantiver intencionalmente empregado em sua exploração industrial, aformoseamento, ou comodidade”. E a professora ainda diz que o artigo 93 faz prevalecer no Direito Civil atual, o instituto da acessão intelectual. Mas isso é para outro arti

Cuidados em uma conciliação trabalhista (CNJ)

O CNJ – Conselho Nacional de Justiça, por meio da Resolução 586/2024, mostrou que os acordos trabalhistas durante o ano de 2023 tiveram, em média, valores superiores a 40 salários-mínimos. Saindo dessa “fofoca” boa, a citada Resolução trata dos acordos homologados em face dos arts. 855-B a 855-E da CLT - Consolidação das Leis do Trabalho (que trata do Processo de Jurisdição Voluntária para Homologação de Acordo Extrajudicial). E ficou resolvido o seguinte: “Os acordos extrajudiciais homologados pela Justiça do Trabalho terão efeito de quitação ampla, geral e irrevogável, nos termos da legislação em vigor, sempre que observadas as seguintes condições: I – previsão expressa do efeito de quitação ampla, geral e irrevogável no acordo homologado; II – assistência das partes por advogado(s) devidamente constituído(s) ou sindicato, vedada a constituição de advogado comum; III – assistência pelos pais, curadores ou tutores legais, em se tratando de trabalhador(a) menor de 16 anos ou

Novidades sobre o foro de eleição em contratos, trazidas pela Lei 14.879, de ontem (4 de junho de 2024)

O Código Civil, quando trata do foro de eleição, explica, no artigo 78, que “nos contratos escritos, poderão os contratantes especificar domicílio onde se exercitem e cumpram os direitos e obrigações deles resultantes”. Acerca deste tema, ontem houve uma alteração no Código de Processo Civil, em especial no artigo 63, sobre a competência em razão do lugar, para se ajuizar as ações em que existem o domicílio de eleição. Alterou-se o § 1º e acrescentou-se um §5º. Vejamos como era e como ficou: “Art. 63. As partes podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo foro onde será proposta ação oriunda de direitos e obrigações. § 1º A eleição de foro só produz efeito quando constar de instrumento escrito e aludir expressamente a determinado negócio jurídico. § 1º A eleição de foro somente produz efeito quando constar de instrumento escrito, aludir expressamente a determinado negócio jurídico e guardar pertinência com o domicílio ou a residência de uma das pa