UM
ARTIGO-CHAVE DO CÓDIGO CIVIL
MIGUEL
REALE
Em todo ordenamento jurídico há artigos-chave, isto é, normas fundantes que dão
sentido às demais, sintetizando diretrizes válidas “para todo o sistema”.
Nessa ordem de idéias, nenhum dos artigos do novo Código Civil me parece tão
rico de conseqüência como o artigo 113, segundo o qual “os negócios jurídicos
devem ser interpretados conforme a boa fé e os usos do lugar de sua
celebração”. Note-se que esse dispositivo já figurava, sob nº 112, no
Anteprojeto de 1972, antes, pois, de seu conhecimento pelo Congresso Nacional.
Desdobrando essa norma em seus elementos constitutivos, verifica-se que ela
consagra a eleição específica dos negócios jurídicos como
disciplina preferida para regulação genérica das relações sociais, sendo
fixadas, desde logo, a eticidade de sua hermenêutica, em
função da boa-fé, bem como a sua socialidade, ao se
fazer alusão aos “usos do lugar de sua celebração”.
Eis aí já esboçada a incidência dos três princípios (eticidade, socialidade e
operabilidade) que, a meu ver, presidem à atual Lei Civil, conforme penso ter
demonstrado em minha conferência intitulada “Visão Geral do Código Civil”,
publicada pela Revista dos Tribunais como introdução da seu livro Novo
Código Civil Brasileiro, 3ª edição.
Quanto à apontada predileção pelo instituto dos negócios jurídicos,preferindo-se
a espécie ao gênero, fatos jurídicos, cabe notar que no negócio jurídico o que
sobreleva não é o aspecto da “declaração de vontades” – como sustentam alguns
juristas – mas sim “o encontro das vontades” para dar nascimento a um
conjunto de direitos e obrigações.
A bem ver, essa questão transcende os limites do Direito Civil para elevar-se à
problematicidade das fontes do Direito. Como saliento em meu livro Fontes
e Modelos do Direito, Hans Kelsen, se, por um lado, exagerou seu formalismo
normativo, por outro lado genialmente alargou os horizontes da normatividade,
acrescentando às três fontes tradicionais do Direito (fonte legal, fonte
jurisdicional e fonte costumeira) uma terceira, a fonte negocial que
emerge da própria sociedade civil através da autonomia de vontades
concordantes, vontades essas que se conjugam para dar origem a direitos e
deveres recíprocos, sobretudo através de avenças ou contratos.
Trata-se, em suma, como afirmo na citada obra, do poder negocial que
instaura relações jurídicas válidas, desde que não conflitantes com expressas
determinações de ordem legislativa.
Isto posto, é a fonte negocial que se desenvolve no plano das
relações civis, justificando-se, por esse motivo, o tratamento privilegiado que
lhe foi dado pelo novo Código Civil, o que tem escapado a comentaristas
situados apenas no âmbito do Direito Privado, sem a visão ampla de toda a
experiência jurídica. Com razão o supra transcrito artigo 113 dá preferência
aos negócios jurídicos para fixar as diretrizes hermenêuticas da eticidade e da
socialidade.
No tocante à primeira, andou bem o legislador ao se referir à boa-fé, que
é o cerne ou a matriz da eticidade, a qual não existe sem a intentio sem
o elemento psicológico da intencionalidade ou do propósito de guardar
fidelidade ou lealdade ao passado. Dessa intencionalidade, no amplo sentido que
Husserl dá a essa palavra, resulta a boa-fé objetiva, comonorma de conduta que
deve salvaguardar a veracidade do que foi estipulado.
Boa-fé é, assim, uma das condições essenciais da atividade ética, nela incluída
a jurídica, caracterizando-se pela sinceridade e probidade dos que dela
participam, em virtude do que se pode esperar que será cumprido e pactuado sem
distorções ou tergiversações, máxime se dolosas, tendo-se sempre em vista o
adimplemento do fim visado ou declarado como tal pelas partes.
Como se vê, a boa-fé é tanto forma de conduta como norma de comportamento, numa
correlação objetiva entre meios e fins, como exigência de adequada e fiel
execução do que tenha sido acordado pelas partes, o que significa que a intenção destas
só pode ser endereçada ao objetivo a ser alcançado, tal como este se acha
definitivamente configurado nos documentos que o legitimam. Poder-se-ia concluir
afirmando que a boa-fé representa o superamento normativo, e
como tal imperativo, daquilo que, no plano psicológico se põe
como intentioleal e sincera, essencial à juridicidade do pactuado.
É o que vê bem Judith Martins Costa quando afirma que a boa-fé, com o advento
do novo Código Civil, se transformou em “topos subversivo do
direito obrigacional”, funcionando “como cânone hermenêutico integrativo do
contrato; como norma de criação de deveres jurídicos, e como norma de limitação
ao exercício de direitos subjetivos”.
Além de à boa-fé, o negócio jurídico deve obedecer aos usos e costumes do lugar
em que foi constituído, o que demonstra que seu titular não é um “sujeito de
direito abstrato” mas uma pessoa situada no contexto de suas circunstâncias
existenciais.
Por aí se vê como estamos longe da concepção romana – seguida pelo Direito
anterior – conforme à qual “neminem laedit qui iure suo utitur”, ou
seja, que, no exercício de direito próprio não se causa dano a ninguém. Pelo
atual Código Civil, ao contrário, o direito subjetivo, como vimos, deve ser
empregado de conformidade com a boa-fé e os usos do lugar.
Por outro lado, volta-se a dar importância ao Direito consuetudinário, o qual
foi banido do Código anterior que atuava somente como um sistema de normas
legais, por sinal que rigorosas e auto-suficientes, em contraste com o ora
vigente, com suas regras genéricas e abertas que permitem ao advogado e
ao juiz apreciarem as relações jurídicas “in concreto”.
Daí as conseqüências do Art. 187, ao considerar ilícito o comportamento do
“titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé e pelos bons costumes”.
21.06.03
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