A 1ª Turma do Supremo Tribunal
Federal (STF) afastou a prisão preventiva de E.S. e R.A.F., denunciados pelo
Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro pela suposta prática do crime de
aborto com o consentimento da gestante e formação de quadrilha
(artigos 126 e 288 do Código Penal). A decisão foi tomada ontem no julgamento do Habeas Corpus (HC) 124306. De acordo com o
voto do ministro Luís Roberto Barroso, que alcançou a maioria, além de não
estarem presentes no caso os requisitos que autorizam a prisão cautelar, a
criminalização do aborto é incompatível com diversos direitos fundamentais,
entre eles os direitos sexuais e reprodutivos e a autonomia da mulher, a
integridade física e psíquica da gestante e o princípio da igualdade.
Após a prisão em flagrante, o juízo de primeiro
grau deferiu a liberdade provisória aos acusados, considerando que as infrações
seriam de médio potencial ofensivo e com penas relativamente brandas. O
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), porém, acolheu recurso do
MPRJ e decretou a prisão preventiva, mantida pelo Superior Tribunal de Justiça
(STJ). Em 2014, o relator do HC no Supremo, ministro Marco Aurélio, deferiu
cautelar para revogar a prisão, posteriormente estendida aos demais corréus.
No HC, a defesa alegou não estarem presentes os
requisitos necessários para a decretação da prisão preventiva, porque os réus
são primários, com bons antecedentes e com trabalho e residência fixa em Duque
de Caxias (RJ). Sustentou também que a medida seria desproporcional, pois
eventual condenação poderia ser cumprida em regime aberto.
O mérito do pedido começou a ser julgado em agosto,
quando o ministro Marco Aurélio votou pela concessão do HC,
confirmando sua liminar. Segundo o relator, a liberdade dos acusados não
oferece risco ao processo, “tanto que a instrução criminal tem transcorrido
normalmente”, com o comparecimento de todos à última audiência de instrução e
julgamento, em agosto de 2015, quando já estavam soltos. Na ocasião, houve
pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso.
Na sessão desta terça-feira, o ministro
Barroso apresentou seu voto-vista no sentido do não conhecimento do HC,
por se tratar de substitutivo de recurso, mas pela concessão da ordem de
ofício, estendendo-a aos corréus. Os ministros Edson Fachin
e Rosa Weber acompanharam esse entendimento e o ministro Luiz
Fux concedeu o HC de ofício, restringindo-se a revogar a prisão
preventiva.
Voto-vista
No exame da questão, o ministro Barroso assinalou
que, conforme já havia assinalado o relator, o decreto de prisão preventiva não
apontou elementos individualizados que demonstrem a necessidade da custódia
cautelar ou de risco de reiteração delitiva pelos pacientes e corréus,
limitando-se a invocar genericamente a gravidade abstrata do delito de
“provocar aborto com o consentimento da gestante”. Ressaltou, porém, outra
razão que o levou à concessão da ordem.
Barroso destacou que é preciso examinar a própria
constitucionalidade do tipo penal imputado aos envolvidos. “No caso aqui
analisado, está em discussão a tipificação penal do crime de aborto voluntário
nos artigos 124 e 126 do Código Penal, que punem tanto o aborto provocado pela
gestante quanto por terceiros com o consentimento da gestante”, observou.
Para o ministro, o bem jurídico protegido (a vida
potencial do feto) é “evidentemente relevante”, mas a criminalização do aborto
antes de concluído o primeiro trimestre de gestação viola diversos direitos
fundamentais da mulher, além de não observar suficientemente o princípio da
proporcionalidade. Entre os bens jurídicos violados, apontou a autonomia da
mulher, o direito à integridade física e psíquica, os direitos sexuais e
reprodutivos da mulher, a igualdade de gênero – além da discriminação social e
o impacto desproporcional da criminalização sobre as mulheres pobres.
Advertiu, porém, que não se trata de fazer a defesa
da disseminação do procedimento – “pelo contrário, o que se pretende é que ele
seja raro e seguro”, afirmou. “O aborto é uma prática que se deve procurar
evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso
mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de
educação sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que
deseje ter o filho e se encontre em circunstâncias adversas”.
Para o ministro, é preciso conferir interpretação
conforme a Constituição aos artigos 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o
crime de aborto – para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção
voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. Como o Código Penal é
de 1940 – anterior à Constituição, de 1988 – e a jurisprudência do STF não
admite a declaração de inconstitucionalidade de lei anterior à Constituição, o
ministro Barroso entende que a hipótese é de não recepção. “Como consequência,
em razão da não incidência do tipo penal imputado aos pacientes e corréus à
interrupção voluntária da gestação realizada nos três primeiros meses, há
dúvida fundada sobre a própria existência do crime, o que afasta a presença de
pressuposto indispensável à decretação da prisão preventiva”, concluiu.
fonte: STF
Comentários