O STF - Supremo Tribunal Federal está para decidir um caso sobre ônus da prova em terceirização de serviços, feito pelo Estado.
O Estado cada vez mais terceiriza suas funções, contratando empresas que, em algumas situações, não pagam seus funcionários, deixando um passivo trabalhista a ser discutido no Judiciário.
O Judiciário (leia-se TST – Tribunal Superior do Trabalho) vem decidindo que, havendo culpa “in vigilando”, o Estado (tomador de serviços) é responsável subsidiário nas dívidas, junto à empresa terceirizada.
Pois bem. Agora está no STF um processo, já com Repercussão Geral admitida, em que se discute quem tem que provar se o Estado foi omisso ou não na fiscalização do terceiro, se este estava pagando ou não os funcionários, recolhendo FGTS, INSS, etc.
O cenário então é este: se a Suprema Corte decidir que o ônus da prova é do trabalhador, estaremos diante de uma prova diabólica, impossível de ser feita, já que o portal da transparência só mostra que o Estado pagou a terceirizada. Mas não tem informações de que a terceirizada (salvo melhor juízo) quitou todos os haveres trabalhistas, como horas extras, adicional noturno, PLR, entre outros títulos.
Agora, se a decisão for a favor do Estado, estaremos diante daquelas opiniões de que o Estado só surgiu para defender a si próprio, como um Leviatã, um grande irmão, ou em uma visão marxista, criado para conservar as coisas como elas estão, ou seja, o trabalhador como minoria, enquanto o Capital mantém sua hiperssuficiência.
Vamos agora mostrar as fontes jurídicas de tudo isso:
O TST, por meio da Súmula 331, determinou nos itens V e VI, a culpa da empresa, na seguinte exposição:
CONTRATO
DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE
“V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem
subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua
conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993,
especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e
legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade
não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela
empresa regularmente contratada.
VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as
verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral”.
Na contracorrente desta jurisprudência trabalhista, combatendo-a, o STF – por meio da ADC - Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16, da relatoria do Min. Cezar Peluso, determinou a seguinte decisão, com a seguinte ementa:
“RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. Subsidiária. Contrato com a administração pública. Inadimplência negocial do outro contraente. Transferência consequente e automática dos seus encargos trabalhistas, fiscais e comerciais, resultantes da execução do contrato, à administração. Impossibilidade jurídica. Consequência proibida pelo art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666/93. Constitucionalidade reconhecida dessa norma. Ação direta de constitucionalidade julgada, nesse sentido, procedente. Voto vencido. É constitucional a norma inscrita no art. 71, § 1º, da Lei federal nº 8.666, de 26 de junho de 1993, com a redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995.”
Deste modo, sendo constitucional o art. 71 da antiga Lei 8666/93, não demorou muito para o setor produtivo voltar a carga no STF, agora por meio de Recurso Extraordinário (760.931), da relatoria da Min. Rosa Weber, com criação inclusive de tese com repercussão geral (Tema 246), decidir o seguinte:
“Responsabilidade subsidiária da Administração Pública por encargos trabalhistas gerados pelo inadimplemento de empresa prestadora de serviço”. Tese: “O inadimplemento dos encargos trabalhistas dos empregados do contratado não transfere automaticamente ao Poder Público contratante a responsabilidade pelo seu pagamento, seja em caráter solidário ou subsidiário, nos termos do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93”.
Interessante que contra a decisão deste RE, fundamento de criação do Tema 246, foi oposto um Embargos de Declaração, e o Plenário do STF esclareceu o seguinte:
“EMBARGOS DECLARATÓRIOS EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. TEMA 246 DA SISTEMÁTICA DA REPERCUSSÃO GERAL. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EMPRESAS TERCEIRIZADAS. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO, OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO OU ERRO MATERIAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO REJEITADOS.
1. Não há contradição a ser sanada, pois a tese aprovada, no contexto da sistemática da repercussão geral, reflete a posição da maioria da Corte quanto ao tema em questão, contemplando exatamente os debates que conduziram ao acórdão embargado.
2. Não se caracteriza obscuridade, pois, conforme está cristalino no acórdão e na respectiva tese de repercussão geral, a responsabilização subsidiária do poder público não é automática, dependendo de comprovação de culpa in eligendo ou culpa in vigilando, o que decorre da inarredável obrigação da administração pública de fiscalizar os contratos administrativos firmados sob os efeitos da estrita legalidade.
3. Embargos de declaração rejeitados”. (RE 760.931-ED, Redator para o acórdão Min. Edson Fachin, Plenário, DJe de 6/9/2019)”.
Mas ainda faltava uma “pá de cal” sobre o tema, que era decidir quem tem que provar a culpa “in vigilando” ou “eligendo” do Estado. E agora surgiu o RE 1.298.647, da relatoria do Min. Nunes Marques, em que já foi reconhecida Repercussão Geral (Tema 1118), cuja ementa do julgamento que está por vir é a seguinte:
“Ônus da prova acerca de eventual conduta culposa na fiscalização das obrigações trabalhistas de prestadora de serviços, para fins de responsabilização subsidiária da Administração Pública, em virtude da tese firmada no RE 760.931 (Tema 246)”.
A descrição do caso está assim no site do STF:
“Recurso extraordinário em que se discute à luz dos artigos 5º, II, 37, XXI e § 6º, e 97 da Constituição Federal a legitimidade da transferência ao ente público tomador de serviço do ônus de comprovar a ausência de culpa na fiscalização do cumprimento das obrigações trabalhistas devidas aos trabalhadores terceirizados pela empresa contratada, para fins de definição da responsabilidade subsidiária do Poder Público”.
Pois bem. Na tentativa de colocar alguma ideia para os julgadores ficarem sensíveis ao caso, e não “jogarem” ao trabalhador o ônus da prova de um fato impossível de ser comprovado por um reles hipossuficiente, citamos uma Convenção Internacional ratificada pelo Brasil.
A Convenção 94 da OIT, que pode ser encontrada no bojo do Decreto 10.088/19, impõe ao Estado o pagamento do trabalhador, em caso de terceirização. Em referido Decreto, encontramos o nome do Tratado da seguinte forma, já dando uma luz (ou pistas), do que o texto dela está por trazer ao presente caso: “CONVENÇÃO Nº 94 DA OIT, SOBRE AS CLÁUSULAS DE TRABALHO NOS CONTRATOS FIRMADOS POR AUTORIDADE PÚBLICA”.
No artigo 5º desta norma internacional, que tem características de Direitos Humanos - logo, norma de sobredireito - está previsto nos §1º e §2º, que:
“1. Sanções adequadas, tais como denegação de contrato ou qualquer outra medida pertinente, serão aplicadas em caso de infração à observação e à aplicação das disposições das cláusulas de trabalho inseridas nos contratos públicos.
2. Medidas apropriadas serão adotadas, seja pela retenção dos pagamentos devidos em função dos termos do contrato, seja por qualquer outra maneira, a fim de permitir que os trabalhadores interessados recebam os salários a que têm direito”.
Ora, o Estado Brasileiro se obrigou a respeitar o disposto acima que é o de pagar aos trabalhadores o que foi combinado, em contratos firmados com autoridade pública.
Não há exceção. Não há vírgulas. Não existe a expressão “salvo se”.
Com efeito, o STF já vem colocando diversos “senões” ao pagamento dos trabalhadores terceirizados, como a necessidade de prova de falta de vigília dos agentes públicos, sobre os contratos firmados com empresas privadas. Agora, acrescentar que esta culpa “in vigilando” será de responsabilidade do trabalhador, que está ligado a um terceiro, e este empregado nem sabe quem contratou esta empresa intermediadora de mão-de-obra, mostra para todos nós uma deficiência de caráter da mais alta Corte do País (que é um dos braços do Estado), que estará “dando de ombros” aos interesses mais caros do trabalhador, que são sua dignidade, seu trabalho e sua remuneração, que geram bem-estar e justiça social (art. 193 da CF).
Em conclusão, que se cumpra – portanto – a norma internacional. Que não se coloque empecilhos ao trabalhador para receber o que é seu. Se o Estado é ineficiente para fiscalizar os contratos que estabelece, que este fato não seja desculpa para o STF inverter a ordem natural das coisas, e faça à si mesmo (já que o STF faz parte do Estado) uma mea-culpa, e assuma o ônus da prova, não terceirizando esta responsabilidade a um simples trabalhador.
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